2020 o ano que não acabou

Fabricio Pamplona
6 min readJan 24, 2021

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Pensa na seguinte hipótese, acordado depois daquela festança de réveillon, com comes e bebes à vontade, foguetório, dança e festejos, a cabeça meio zonza ainda da balbúrdia, você vai lavar o rosto, se olha no espelho, checa os zilhões de mensagens de “Feliz Ano Novo” no celular e, um detalhe chama atenção: dia 32/12/2020.

Soma a esse fato, que esse foi um dos anos que a maioria de nós gostaria de deixar pra trás sumariamente, e esperávamos ansiosos que passar a folhinha do calendário transformasse tudo ao nosso redor num passe de mágica.

Infelizmente não foi bem assim, então… bem vindos a 32 de dezembro. Ou como preferem alguns… 2020 Parte 2.

Imagina acordar de ressaca do reveillon e começar tudo de novo? Pois é… estamos nessa.

Como se estivéssemos num filme que foi feito intencionalmente para que a história não terminasse no final (pensa na Trilogia do Senhor dos Anéis, por exemplo), nosso maior medo se concretizou: terminamos 2020 sem ver o final da história. A sensação de repetição, ou continuidade, é tangível.

Viramos 2020 e a pandemia não passou. Pelo contrário, o Brasil está no mesmo nível do que pensávamos ser o pico, lá no meio do ano. Todo o esforço conjunto como sociedade, e particularmente dos profissionais de saúde para ajudarmos a reduzir os números de casos e evitar fatalidades… praticamente em vão.

Os tropeços foram inúmeros: demora para iniciar as ações, poucos testes, insistência em tratamentos “milagrosos” sem eficácia comprovada… e não estamos muito melhor neste momento, dada a dificuldade em firmar contratos com produtores de vacinas e até mesmo na compra de insumos básicos como agulhas e seringas.

2021 já entrou com cara de que será um ano inevitavelmente desafiador. Para tirar um pouco “o nosso da reta”, como um todo, o mundo também está no “auge” de novos casos, embora diversos países mais responsáveis já tenham iniciados vacinações em massa, incluídos aí europeus, asiáticos, Estados Unidos e vários vizinhos nossos da América Latina. E há também os mais responsável ainda, que já resolveram seus problemas com o coronavirus faz tempo e a vida “voltou praticamente ao normal”, como a Austrália e Nova Zelândia até os que ainda se preocupam com as dores dos demais, e além de comprar doses para uso próprio, já estocarem doses da vacinas para causas humanitárias, como o Canadá.

A visão por trás de uma atitude dessas é uma concepção de que estamos intrinsicamente conectados. Nada como um “inimigo comum” para unir os países e nos fazer perceber que nossas fronteiras são meramente imaginárias. Este ano também aprendemos que os vírus não respeitam fronteiras, não é? É verdade que uns estão sofrendo mais do que os outros, mas a maior das fronteiras que impedem o nosso desenvolvimento é a noção de responsabilidade, compreensão da ciência e sobretudo a disciplina.

O jeitinho brasileiro de fazer tudo no improviso e resolver “na raça” não foi suficiente dessa vez. O que vai nos fazer passar por esse problema definitivamente — que ainda persiste, sempre é bom avisar — são mudanças culturais, planejamento e execução de estratégias de saúde pública. Pior que historicamente somos bons nisso especificamente no aspecto da vacinação. Como que conseguimos avacalhar até com isso? Impressionante.

Esse ano vai deixar marcas indeléveis na nossa sociedade, e existem perspectivas de que talvez tudo que vivemos em 2020 nunca fique “para trás”:

1. Existem evidências concretas de re-infecção pelo novo coronavírus, já que os anticorpos duram em torno de 5 meses em circulação no organismo humano. Ou seja, quem já se infectou não está livre, e mesmo quem se vacinar provavelmente não estará completamente protegido a não ser que faça reforços periódicos.

2. Os vírus são mutantes, e já foram identificadas diversas novas cepas em diferentes países, incluindo o Brasil. Uma delas já se sabe que é mais contagiosa, tem uma taxa de transmissão substancialmente maior a do vírus que conseguiu se alastrar rapidamente por todo o planeta (dá pra ser pior!)

3. Não haverá vacina para todo mundo. Se somarmos todas as doses de vacinas que todos os fabricantes anunciaram, temos pouco mais de 2 bilhões de doses. Ou seja, será possível atender apenas cerca de 1/3 da população mundial neste ano.

O futuro já chegou, ele apenas está mal distribuído. E neste caso, vai fazer com o que ano de 2020 se arraste leeeeeentamente ao longo de 2021.

No lado bom dessa história, várias mudanças muito significativas que estavam por ocorrer, e encontravam resistência, acabaram acontecendo.

As relações de trabalho se tornaram mais autônomas, as pessoas tiveram um tempo enorme para olhar pra dentro e várias relações foram ressignificadas.

Teve quem rompesse relacionamentos quando descobriu que não conseguia conviver 24/7 com seu parceiro em casa, e isso é bom. Ninguém merece ser escravo de uma decisão que tomou há tempos atrás, o mundo muda e a gente evolui.

Teve quem por outro lado valorizasse extremamente o apoio da família e das pessoas com quem convive. Aprendendo a valorizar mais ainda quem está longe. Por outro lado, a distância entre as pessoas que estão “perto” ou “longe” foi praticamente a mesma esse ano, o que fez com que a gente se aproximasse.

O futuro já chegou, ele apenas está mais distribuído. E neste caso, vai fazer com o que ano de 2020 se arraste leeeeeentamente ao longo de 2021.

E teve quem redescobriu e reafirmou relações, com a convivência fazendo os vínculos se tornarem mais próximos. Eu tive um privilégio enorme de conviver muito próximo dos meus filhos gêmeos com 2 anos de idade. Certamente não teria os visto crescer com tantos detalhes, nessa época tão mágica e por isso sou muito grato.

Esse ano “já passou” mas ainda vai ficar. Antevejo modificação perenes no nosso comportamento e hábitos de higiene. Voar de avião possivelmente nunca mais será a mesma coisa. Aparecer gripado no trabalho certamente nunca mais será bem visto. E trabalhar de casa, ou de qualquer lugar, não será mais coisa de vagabundo que “quer uma desculpa pra folgar”. Muitas pessoas se descobriram produtivas e felizes fora do escritório e as empresas que aderiram de verdade à cultura digital tiveram muitos ganhos este ano. Me inclua nessa lista de quem não quer voltar atrás.

Viramos a página do calendário, e ainda tem um gostinho de 2020 no ar. A verdade é que a gente não aguenta mais, e por isso mesmo já se “acostumou” com a situação. Por isso ao invés de resolver é possível que o caminho da resiliência não seja resistir, mas entender que as coisas mudaram e seguir em frente. Cuidar com a sua saúde e se adaptar, não tem muito outro caminho.

Coloco como legados positivos, o ganho de autonomia, a responsabilidade pela próprias decisões e consciência de que somos todos frágeis. Independente de cor, raça, credo, time de futebol ou opinião política estamos todos inter-relacionados e este ano nos faz lembrar disso de maneira dolorosa. Que possamos levar esse aprendizado para momentos mais felizes e aprender a conviver, apesar das diferenças.

Pra quem acredita no famoso ditado que “o ano só começa depois do carnaval”, parece que o próximo virá bem tarde, e talvez aconteça no inverno. Nada mais simbólico. Quem sabe ao festejarmos no inverno a gente espante de verdade esse fantasma e a primavera traga a perspectiva de renascimento que tanto desejamos. Ou não, se, este vírus ainda estiver rondando, um carnaval na fase mais propícia à contaminação talvez seja tudo que ele precise para fixar residência de fato no nosso país e se tornar endêmico..

Sai de mim 2020 grudento! E vamos pra frente, o mundo mudou, a gente tem que mudar. Só isso vira a página do calendário de verdade.

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Fabricio Pamplona

Neurocientista. Empreendedor. Muita história pra contar.