Os 7 pontos cegos na regulamentação de Cannabis medicinal brasileira que precisam ser abordados na versão atualizada da RDC327

Fabricio Pamplona
9 min readOct 18, 2023

Na última semana tive a honra e o prazer de ser palestrante no Congresso Farmacêutico promovido pelo CRF-SP, que contou com 3 atividades dedicadas ao entendimento da Cannabis medicinal.

Para a atividade que fui convidado, tivemos uma mesa-redonda com participação de figuras importantes do cenário brasileiro, como a Profa Margarete Akemi, representando o conselho, João Paulo Perfeito da GGMESP-ANVISA e a Carol Sellani, representando a Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (ABIQUIFI).

Quando me dei conta do "peso" da mesa, de repente até me perguntei o que eu estava fazendo ali… afinal, estou representando o que? Pensei comigo mesmo "acho que estou representando os farmacêuticos, empreendedores, e acima de tudo o pensamento/conhecimento científico, vou com essa visão".

E aí, inspirado por essa auto-imagem, decidi que ia abordar os pontos incômodos, que ainda precisam ser melhor trabalhados no cenário como o Brasil está organizado do ponto de vista de regulamentação. Afinal, seria uma oportunidade única de conversar com o regulador e setor regulado, no mesmo local, e em frente a uma audiência interessada e qualificada.

A minha palestra foi sobre "Os 7 ponto cegos que o Brasil precisa abordar". Iniciei reiterando que não era uma "indireta" à ANVISA, mas claramente uma pequena provocação para que a gente pudesse exercitar o pensamento crítico e discutir pontos de interesse ou de dificuldades em encontrar as soluções que de fato promovem um avanço.

Aliás, importante dizer, e mencionei também em público durante o congresso, que a ANVISA até hoje tem uma postura bastante conservadora, mas talvez por isso mesmo o Brasil tenha dados passos consideravelmente mais consistentes do que muitos outros países. Nosso mercado parece estar um pouco mais protegido do poder da especulação, que se de um lado catapultou rapidamente o Canadá ao protagonismo mundial nessa área, da mesma forma, o derrubou meteoricamente. Para quem não está acompanhando, as "gigantes" canadenses literalmente viraram pó.

https://seekingalpha.com/article/4629609-canopy-growth-buy-this-cannabis-stock-before-legalization

A maior delas, a Canopy, amargou uma perda de 98% de valor desde seu pico histórico em meados de 2018. Um drop vertiginoso desses não é brincadeira… E o cenário é mais ou menos generalizado, outras grandes como Cronos, Tilray e Aurora também não demonstram uma perspectiva muito melhor. Provavelmente um passo maior do que a perna, excesso de otimismo, e talvez não seja coincidência o estrito alinhamento com o mercado "recreativo", vestindo a carapuça que os detratores deste mercado sempre apontaram com o dedo em riste: "Maconha medicinal é uma desculpa para a legalização das drogas". Pois bem, no Brasil não é, e graças ao papel sensato e moderador da ANVISA.

O tipo de artigo que sai agora sobre as empresas que antes eram as queridinhas do mercado são deprimentes: "3 Penny Stocks to Sell in September Before They Crash & Burn" 😢. Acabou a farra, moçada.

O potencial de um gigante chamado Brasil

Antes de falar da minha exposição no evento, queria ressaltar um slide da apresentação do João Paulo, colega farmacêutico, que mostra o ritmo em que o mercado brasileiro bem crescendo. Mesmo "conservadoramente" como frisei há pouco, a regulamentação atual permite que os pacientes que acessam produtos contendo derivados de Cannabis estejam na casa de 160–180 mil pessoas (via RDC 660).

Este número aumenta consideravelmente à medida em que incluímos também os pacientes compram os produtos com autorização sanitária (via RDC 327) e os assistidos pelas associações. Sem nenhum receio de errar, eu diria que esse número passa fácil dos 200 mil, possivelmente chegando a 250 mil pacientes no Brasil em 2023. Já é um mercado considerável, que não pode mais ser desconsiderado. Ainda assim, apenas 0.1% da população, bastante distante dos 3–4% projetados pelos mais otimistas.

Os 7 pontos que abordei na palestra foram

  • Achar que o tratamento com CBD é restrito à epilepsia refratária infantil (posição CFM)
  • Importação de flores: cannabis fumada por ser medicinal?
  • Pouco avanço na inclusão novos canabinóides. Há muita novidade sobre o tema
  • Autorização sanitária (RDC327) somente para produtos majoritariamente CBD
  • Prescrição por “não médicos”
  • Tensão no MAPA em relação ao uso veterinário
  • Exclusão do setor magistral
Evolução dos pedidos de produtos contendo canabinóides importados para o Brasil nos últimos 8 anos. Essa é a típica curva de “crescimento exponencial”, com números que praticamente dobram a cada ano. Observação: O ano de 2023 é uma projeção a partir do dado atual de 110 mil até o mês de agosto.
Pra quem ainda não conhece direito a realidade deste mercado no Brasil, esse slide resume muito bem. Obrigado João Paulo, ficou Perfeito :-) . Atualizado até outubro/2023

O primeiro ponto parece até piada. Seria cômico, se não fosse trágico que o Conselho Federal de Medicina (CFM) ainda alegue que "o tratamento com CBD seja restrito à epilepsia refratária infantil" como j'a reiterou diversas vezes. Com diversas outras indicações clínicas sendo frequentemente relatadas para os derivados de Cannabis, e inclusive tendo um medicamento registrado no Brasil contendo THC e CBD como princípios ativos para o tratamento de esclerose múltipla, bem… tire suas próprias conclusões, mas eu teria bastante vergonha de falar uma besteira dessa em público. 'E assinar um atestado de ignorância a respeito do tema.

O segundo tópico é bastante polêmico e atual. A minha colocação parte da primeira premissa: o uso de flores de Cannabis fumadas pode ser considerado medicinal? A resposta é um em cima do muro " depende", e a meu ver é uma questão mais cultural do que científica. Explico: em alguns países, como por exemplo o tradicionalíssimo Israel, é bastante comum médicos prescreverem um "baseado" para o paciente. Sobretudo pacientes idosos, com problema de sono e/ou dor. O benefício é um ganho perceptível de qualidade de vida. Isso está relatado em artigos científicos e estudos clínicos como já relatei aqui, interessante, não é?

A grande questão médica então passa a ser os custos benefícios dessa forma de adminitração. No Brasil, não vejo um cenário favorável a esse uso. Ou pelo menos não via, até que recentemente alguém resolveu tentar importar flores e conseguiu. Houve um pequeno boom de prescrições e nos jornais começaram a pipocar as manchetes do pequeno embate de narrativas que se seguiu: fumar é uso medicinal legítimo ou só uma desculpa para "legalizar" ? No final das contas a ANVISA proibiu, e agora já está claro que n˜ao é permitida a importação de flores pela RDC660, mesmo que com prescriç˜ao médica.A justificativa para a proibi'cão foi que havia desvirtuação do prop'osito e desvio para uso recreativo.

https://oglobo.globo.com/saude/noticia/2023/07/19/anvisa-proibe-importacao-de-flor-de-cannabis-para-fins-medicinais.ghtml

Engraçado que perdi a conta do número de pessoas e at'e algumas calls que participei de empreendedores jurando de pé junto que conseguiria montar um business de importação de flor no Brasil… puro oportunismo e vôo de galinha. O básico para se empreender nessa área é entender bastante de estratégia regulatória, que diga-se de passagem, é um assunto complexo.

Também mencionei que houve pouco avanço na inclusão de novos canabinóides. E de fato, não é fácil que o ambiente regulatório acompanhe, pois há novidades surgindo a todo momento sobre o tema. Sem contar componentes "'óbvios", como o CBG e o THCA, que muitos já ouviram falar por termos produtos disponíveis com essa composição, no cenário internacional, existem produtos contendo delta-8-THC (uma versão "mais branda" do THC), e mais recentemente o HHC (hexahidrocanabinol) — um pouco mais potente do que o delta-8 — e o THCP (tetrahidrocanabiphorol), que é uma substância correlata 30x mais potente do que o THC. Tudo isso presente na planta em quantidades ínfimas, ou seja "é natural", mas de fato para produção comercial o que se sabe 'e que esses canabinóides são obtidos por rota semi-sintética a partir do CBD. Ou seja, tudo muito complicado, principalmente do ponto de vista regulatório.

Na mesma linha, o foco das autorizações sanitárias (RDC327) ser voltada somente para produtos contendo majoritariamente CBD é um tanto quanto arbitrário, visto que há tantas evidências para uso medicinal do THC quanto do CBD (ou até mais). Acredito que haverá uma atualização, e que a atual restrição de THC para pacientes terminais seja revista. É muito pouco atrativo que um fabricante invista em obter uma licença para a comercialização de um produto que tenha sua distribuição tão artificialmente restringida.

Minha provocação ao CRF-SP foi: se o entendimento é que biomédicos podem prescrever produtos derivados de Cannabis, os farmacêuticos também deveriam.

Enquanto isso, já que os "produtos derivados da Cannabis" não são de fato medicamentos, houve a liberação da prescrição destes produtos para biomédicos pelo conselho de biomedicina, expandindo a gama de prescritores para além dos médicos, dentistas, nutricionistas e fisioterapeutas, que diga-se de passagem já era mais ampla do que os medicamentos comuns. Minha provocação ao CRF-SP foi: se é esse o entendimento, os farmacêuticos deveriam poder prescrever também. E se há necessidade de qualificação e treinamento, vamos fazer, conhecimento nao falta. Com farmacêuticos prescrevendo e farmácias com estoque de produtos pela RDC327, nós nos aproximaríamos da possibilidade de termos verdadeiros dispensários no Brasil. E uma visão interessante, e que parecia muito distante… quem sabe não esteja tão longe assim.

Ainda discutimos rapidamente sobre a tensão no MAPA em relação ao uso veterinário dos canabinóides, que tem se declarado "incapaz" de registrar os produtos. Curioso, isso não está escrito em lugar nenhum e, muito pelo contrário, há diversos produtos com o mesmo status regulatório do CBD registrados no MAPA como benzodiazepínicos, opioides, anestésicos… todos de uso animal e legítimo. Será excesso de receio ou a boa e velha "implicância" com o CBD?

De fato o registro de medicamento veterinário já foi entendido por algumas empresas como um "atalho" para o acesso ao mercado com distribuição local, o que causa uma suspeita enorme na ANVISA, que tem receio do desvio destes produtos para o uso humano sem a devida autorização. O " status" de medicamento, ainda que veterinário, abriria uma série de prerrogativas distintas do que se tem hoje a estes produtos.

Por último, mas não menos importante, a exclusão do setor magistral também parece extremamente arbitrária, visto que esse setor manipula diversos medicamentos, inclusive controlados, sem qualquer problema. A justificativa dada foi de que ipsis literis, as farmácias de manipulação podem manipular insumos de qualquer medicamento registrado no Brasil. Como os produtos derivados de Cannabis n˜ao são medicamentos… é a retórica do argumento que parece um cão correndo atrás do próprio rabo, mas acredito que esse imbróglio seja resolvido num futuro próximo.

Aliás, essa é a grande promessa que ficou no ar: haverá uma atualização em breve da RDC327 (veja fotos abaixo). O processo já está acontecendo, e é uma realidade, conforme podemos ver nesse slide da agenda regulatória da ANVISA… é um processo longo, sério, criterioso e com várias etapas. Então, "não vai ser pra ontem" , mas pra quem tiver interesse, um documento bem interessante para se consultar é o relatório do " E-participa" que mostra o compilado de mais de mil contribuições ao processo, na etapa inicial de participação social. Aqui neste link o documento completo para download com mais de 40 páginas.

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Fabricio Pamplona

Neurocientista. Empreendedor. Muita história pra contar.